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Sou voluntária porque...

 

“Ninguém cometeu maior erro do que aquele que não fez nada porque apenas poderia fazer muito pouco”. A frase é de Voltaire, e ouvi-a pela primeira vez quando tinha uns 17 anos, numa palestra de um ambientalista na escola que frequentava no Porto, cidade de onde sou natural e onde vivi até aos meus 37 anos.

 

Por circunstâncias da minha vida pessoal, há pouco mais de dois anos mudei-me para Faro. Vivia cá há já cerca de um ano quando me apercebi da existência, num velho barracão abandonado por onde passava todos os dias, de dois gatinhos, que mais tarde percebi serem duas fêmeas, às quais acabaria por se juntar mais tarde um macho tigrado ainda bebé. Comecei a alimentá-los, e fi-lo diligentemente durante três meses, embora soubesse, pelos vestígios que ia encontrando no local, que mais alguém os alimentava. Entre Setembro e Dezembro de 2014, duas vezes por dia, passava pelo velho barracão e deixava água, ração seca e húmida para os três, e fazia tentativas de aproximação em que eles não se mostravam muito interessados.

 

Um dia cheguei ao nosso ponto de encontro e deparei-me com o barracão, que tinha sempre as portas e janelas escancaradas, fechado a cadeado e selado com ripas de madeira e cimento. Percebi, quase se imediato, que os três animais se encontravam lá dentro, sem maneira de sair.

 

Lancei rapidamente um pedido de ajuda, no Facebook e em vários e-mails para todas as associações e movimentos de protecção animal que encontrei e que sabia que actuavam em Faro, além da câmara. Desses apelos resultaram contactos com vários amigos dos animais na cidade, e sei que alguém, sabendo ou não dos meus relatos nas redes sociais, foi ao barracão e rebentou com as janelas, deixando-as de novo abertas.

 

Confirmando os meus receios, constatei que os animais estavam de facto lá dentro, mas só as duas gatas saíram, enquanto o tigradinho permanecia lá dentro, assomando à janela apenas por escassos segundos para recolher a ração que eu deixava. Tinha entretanto conhecido uma senhora, cuidadora de várias colónias na zona, que todos os dias passava também por lá a saber dos três gatinhos. A preta e branca a que chamei Blacky nunca se deixou tocar nem sequer aproximar mais do que uns cinco metros. Era uma gata de rua já esterilizada e, soube por essa senhora, pertencia a uma colónia próxima. Já a gata branca, a que na altura chamei Beauty, foi-se chegando e até já “falava” comigo. E um dia saltou-me para o colo!

 

Apesar de ter em casa a Cookie, uma gata com cerca de um ano que seis meses antes tinha recebido das mãos de uma amiga do Facebook que, vim a saber mais tarde, era cuidadora de uma colónia do Núcleo de Faro da Animais de Rua, e de a Cookie ter grandes traumas com seres humanos e outros animais – sabemos que era vítima de bullying de uma irmã e supomos que tenha sofrido maus-tratos, tal é o pavor que tem, ainda hoje, de gente que não conhece –, não podia deixar a Beauty na rua. Não depois de ver que corria o risco de ficar fechada de novo no barracão, e não depois de ela ter saltado para o meu colo e me ter perseguido quase até casa, recuando apenas quando o caminho era muito próximo da estrada e o barulho dos carros a assustava.

 

No dia seguinte levei uma transportadora e trouxe-a para casa. Não foi preciso isco nem armadilha. Ela queria mesmo vir comigo! Adoptei-a. Chamei-lhe Sushi e passou a ser o elemento mais novo da família. Mas os outros dois animais permaneciam no barracão, que ia sendo sucessivamente vedado pelo dono (a quem tentei contactar explicando que havia animais a viver lá dentro, mas que sempre mostrou ser indiferente ao sofrimento deles) e rebentado por alguém para libertar os animais que ficavam sempre lá dentro.

 

Insisti então nos contactos que tinha feito. A Animais de Rua foi a entidade que mostrou mais vontade de ajudar e foi assim que conheci a então coordenadora do Núcleo de Faro da associação e uma outra voluntária, com quem várias vezes montei guarda à porta do barracão, de armadilha pronta, à espera de que os animais caíssem lá dentro. Até na noite de Natal lá estivemos, e nada. Nunca saíram do barracão para caírem na nossa armadilha.

 

Soubemos mais tarde que a gatinha preta e branca tinha regressado à colónia a que pertencia, e que o gatinho tigrado tinha sido resgatado pela tal cuidadora que, como eu, lhes deixava diariamente água e ração. Sempre que passo por lá continuo a espreitar e a recordar esses tempos, e a gatinha Blacky de vez em quando ainda anda por lá, mas agora sempre do lado de fora do barracão, que foi novamente selado. Já não há perigo, e tudo está bem quando acaba bem.

 

Das esperas que fizemos em conjunto resultou a oportunidade de me tornar voluntária do Núcleo de Faro da AdR. Eu desconhecia que poderia ajudar mesmo não fazendo capturas de animais, porque isso não me sentia preparada para fazer parte de um projecto deste tipo. Tinha trabalhado 10 anos como jornalista e cerca de dois como assessora política, e foi assim que a coordenadora do núcleo se lembrou de me desafiar para colaborar na página de Facebook da Animais de Rua Faro. Comecei timidamente a escrever em Abril do ano passado, e hoje faço parte de uma equipa em que muitos são de longe (os meus colegas do Facebook são todos de Lisboa), mas diariamente fazem do longe mais perto para ajudar.

 

Além de escrever a maior parte dos textos para a página de Facebook do Núcleo de Faro, que hoje coordeno, assim como o Twitter e o Instagram, comecei a fazer algumas fotografias e a colaborar com a página nacional da AdR. Fora das redes sociais, tenho a "pasta" do Artesanato, ajudo em alguns eventos (recentemente tive até a missão de apresentar a nossa associação num evento para o qual fomos convidados), faço parte da equipa que recebe e analisa as candidaturas para adopção dos nossos animais, estabeleço contactos com entidades externas, faço cartazes e participo em algumas recolhas de bens alimentares em supermercados, dando sempre uma mão em todas as actividades em que sinto que posso ser uma mais-valia.

 

Sou voluntária há relativamente pouco tempo, mas sinto que sempre fiz isto e que o voluntariado faz parte de mim. Também já “assediei” pessoas para se juntarem à Animais de Rua, e apesar do meu mau feitio (é assim que algumas pessoas definem a minha frontalidade, por vezes menos polida), sei que a minha ajuda tem sido preciosa, como a de todos os colegas que comigo partilham esta forma de vida. Vesti esta camisola e sou voluntária.

 

Sou voluntária porque sim. Porque não concebo passar ao lado do sofrimento de um animal, como de uma pessoa, e nada fazer para ajudar. Sou voluntária porque acredito, como disse na primeira frase deste já longo testemunho, que “ninguém comete maior erro do que aquele que não fez nada porque apenas poderia fazer muito pouco”. O meu muito pouco é de enorme importância para cada animal que ajudo a ajudar. Não mudarei o mundo, mas sei que ajudo a mudar o mundo destas criaturas. Que todos os dias contribuo, de forma minúscula mas essencial, para salvar vidas. Sem capa nem espada, sem poderes especiais, sem dar mais do que aquilo que me sobra: tempo e vontade. É tudo aquilo de que preciso para ajudar a fazer a diferença. E, bolas, como me sabe bem adormecer e acordar todos os dias! ;)

 

Texto escrito para a página de Facebook do Núcleo de Faro da Animais de Rua, em Outubro de 2015

(circunstâncias pessoais levaram-me a deixar a associação em Novembro, mas fica para sempre comigo tudo o que aprendi com esta valiosíssima experiência)

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