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REPORTAGEM PUBLICADA NO SUPLEMENTO «JUSTIÇA E CIDADANIA» DO JORNAL «O PRIMEIRO DE JANEIRO» EM MAIO DE 2007.

TRIBUNAIS CIVIS DEIXAM DE TER CAPACIDADE DE INTROMISSÃO NO DOMÍNIO CASTRENSE

Novas regras na disciplina militar

 

A aplicação das sanções contempladas no Regulamento de Disciplina Militar vai ter novas regras. A proposta de lei que cria o regime especial para processos relativos àqueles actos administrativos foi aprovada pelo Governo e aguarda a aprovação do Parlamento, mas não é uma medida consensual no meio castrense…

 

CARLA TEIXEIRA

A redacção do Regulamento de Disciplina Militar (Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril) estabelece o conceito de disciplina militar como “o laço moral que liga os diversos graus da hierarquia militar”, nascido “da dedicação pelo dever” e que “consiste na escrita e pontual observância das leis e dos regulamentos militares”. Obtém-se pela “convicção da missão a cumprir”, e mantém-se através do “prestígio que nasce dos princípios de Justiça empregados, do respeito pelos direitos, do cumprimento dos deveres, do saber, da correcção de proceder e da estima recíproca”.

À luz daquele regulamento, “as forças armadas constituem uma comunidade dentro da sociedade em que se inserem e, como tal, inevitável será que ao longo dos tempos sofram no seu seio a influência do ambiente social que as cerca”. Uma influência que, todavia, “não pode ir além de determinados limites, sob pena de destruir o equilíbrio e a íntima coesão que as animam”. Recordando a referência “sintética, mas eloquente”, da Constituição da República à comunidade militar como uma “instituição nacional”, o diploma considera que ela só poderá cumprir integralmente a missão que constitucionalmente lhe é atribuída, que consiste na defesa de ideais como a independência nacional, a unidade do Estado e a integridade do território, se lhes forem garantidos os meios indispensáveis. Um desses meios é, de acordo com o regulamento, a disciplina, sem a qual, salienta o documento, “não haverá forças armadas”.

Confirmada a importância que as esferas militares atribuem ao conceito de disciplina, seria previsível a falta de consenso no que toca à anunciada alteração das regras naquele domínio. No dia 3 deste mês o Governo anunciou a intenção de proceder a nova alteração do actual Regulamento da Disciplina Militar, segundo explicou o ministro da Defesa. Nuno Severiano Teixeira afirmou que a medida pretende ir no sentido de “eliminar o automatismo da suspensão dos actos administrativos” e de “criar critérios definidos para a possibilidade de suspensão”. Em termos processuais, a proposta estabelece a “possibilidade de instaurar a figura de juízes e assessores militares” nos tribunais centrais administrativos. O governante garante que, com esta proposta de lei, ainda em análise na Assembleia da República, ficam salvaguardados direitos, liberdades e garantias dos militares, que são compatibilizados com o regulamento de disciplina militar. Nuno Severiano Teixeira justificou a escolha dos tribunais superiores para o tratamento dos casos de disciplina militar por considerar que eles envolvem, muitas vezes, questões de liberdade.

O diploma proposto pela tutela preconiza a criação de um regime específico para o recurso, em matéria de disciplina militar, sem no entanto vedar aos militares acesso às vias gerais de impugnação dos actos administrativos. Em simultâneo, o diploma prevê a eliminação da possibilidade de suspensão automática ou semi-automática dos actos administrativos relativos àqueles processos, salvaguardando a existência de tutela efectiva, podendo aqueles actos ser suspensos nas situações em que se verifiquem os critérios especiais de decisão que agora se consagram. Os casos de disciplina militar vão passar a ser tratados por tribunais administrativos superiores, onde serão colocados juízes e assessores militares. Até agora aqueles processos eram tratados por tribunais administrativos comuns, de primeira instância, como os que, em Fevereiro deste ano, em Sintra, ditaram a suspensão da pena de detenção de 11 sargentos que tinham sido punidos pela participação num protesto contra os cortes de verbas na Defesa.

 

MEDO DA MUDANÇA?

 

Luís Alves de Fraga, coronel da Força Aérea na reforma e docente da Universidade Autónoma de Lisboa, autor de vários livros e reflexões sobre a área militar, e sobre a Guerra Colonial em África, defende, no blog Fio de Prumo, que “um militar que se preza da farda que enverga começa por dar o exemplo, e é pelo exemplo que sabe conduzir os homens que comanda”. Uma mesma ideia que foi também transmitida ao «Justiça & Cidadania» por uma fonte do meio castrense, que pediu anonimato, para quem “dizer que o Regulamento de Disciplina Militar é uma peça vital para o bom funcionamento das Forças Armadas é profundamente errado”, sendo aquele diploma “apenas um, e sem sombra de dúvida o último, dos muitos regulamentos que estão ao dispor dos comandantes e dos chefes militares para se fazerem entender e obedecer pelos seus homens”. A mesma fonte afirma peremptoriamente que, “na sua essência, a disciplina militar depende, mais do que da força coerciva do regulamento, da qualidade dos chefes”, a todos os níveis da estrutura hierárquica, sendo que, quase sempre, “o recurso à punição traduz a ocorrência de falhas ou omissões de quem aplica as sanções. Na óptica militar, um comandante que sente necessidade de punir sabe que falhou na sua estratégia de orientar e comandar o seu pelotão, experimentando, por isso, o “travo amargo do fracasso”.

Não obstante, a estrutura reconhece a importância do Regulamento de Disciplina Militar, considerando, no entanto, que essa relevância nunca impediu que, ao longo dos anos, o documento fosse sendo alvo de diversas e “significativas alterações, que visaram sempre a sua adequação ao espírito da época e, sobretudo, à legislação em vigor”.Considerando que “longe vai o tempo” em que os oficiais detinham nas suas mãos o poder de vida e de morte dos soldados que comandavam, da mesma forma que está “ultrapassado o tempo das chicotadas e de outros castigos aviltantes, como é hoje aviltante a punição de perda de liberdade”, a mesma fonte aponta a “espécie de medo da mudança” das hierarquias militares superiores, considerando que “os comandantes não podem temer as mudanças, que houve no passado e que haverá necessariamente no futuro”. Da mesma forma, refere o militar ouvido pelo «Justiça & Cidadania», também “não devem esquecer que vai continuar a ser deles, da sua coragem, da sua conduta, do seu exemplo, do seu discernimento, da verticalidade e da sabedoria que demonstrarem, do seu alto sentido de justiça, da intransigente defesa dos legítimos interesses dos seus subordinados, que a coesão e a disciplina das Forças Armadas dependem”.

 

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE SARGENTOS ACUSA GOVERNO DE REITERADAS VIOLAÇÕES À LEI

"Dizer que a medida é péssima é um eufemismo"

 

São “restrições absurdas” que se traduzem numa “perda inaceitável de direitos”. A proposta de revisão do estatuto do dirigente associativo e as novas regras para o acesso dos militares aos tribunais merecem o “completo repúdio” da Associação Nacional de Sargentos.

 

CARLA TEIXEIRA

 

A revisão do estatuto do dirigente associativo e a reformulação dos mecanismos de acesso dos militares aos tribunais colhem duras críticas da Associação Nacional de Sargentos, que acusam a tutela de reiteradas ilegalidades e inconstitucionalidades no âmbito deste processo. Em declarações ao «Justiça & Cidadania», o sargento Álvaro Martins explicou que a proposta do Governo para a revisão do estatuto do dirigente associativo representa, na verdade, a adopção de “um código penal” para aqueles responsáveis. “Dizer que a medida é péssima é um eufemismo”, segundo o director do jornal «O Sargento», que considera que a proposta da tutela “torna impeditiva e quase impossível a existência do associativismo” na esfera castrense, já que impede a participação nas associações de qualquer militar com funções de comando, direcção ou chefia”. Álvaro Martins salienta que “dificilmente haverá um oficial que não caia numa daquelas incompatibilidades”.

A Associação Nacional de Sargentos contesta igualmente a afectação de dirigentes associativos, enquanto tal, ao Regimento de Disciplina Militar, numa “confusão de conceitos” entre militares em funções e quando considerados apenas na vertente associativa, que “não é aceitável”, tal como não é concebível, para Álvaro Martins, a colocação sob a alçada do RDM dos militares na reserva e na reforma. Frisando que a proposta do Ministério da Defesa vai “muito além do que é um estatuto do dirigente associativo”, com “perda de direitos individuais e colectivos” da classe. São “restrições absurdas que”, de acordo com a ANS, traduzem inequivocamente o objectivo do Governo: “Claramente silenciar” todas as vozes da contestação ao Poder Central.

Álvaro Martins recorda que, há uns meses, foi levantada “uma nuvem de pó sobre a vida nos nossos quartéis, como se houvesse um terrível ambiente generalizado de indisciplina, o que nunca correspondeu à verdade”. O sargento considera que “está agora a começar a perceber-se o objectivo dessa nuvem de pó”, que terá servido como “desculpa” para alavancar uma revisão do Regulamento de Disciplina Militar, que ainda se encontra em estudo por parte da tutela, e mexidas no estatuto do dirigente associativo e nas regras de acesso aos tribunais. Medidas que, de acordo com o militar, “não condizem com a Constituição e não respeitam os direitos, as liberdades e as garantias” dos cidadãos, pelo que merecem o “completo repúdio” da associação.

 

SIMULACRO DE AUDIÇÃO

 

O director do jornal «O Sargento» refere ainda que “este governo tem enveredado por um incumprimento generalizado e recorrente de muitas leis”, e a alteração das regras de acesso aos tribunais “é mais uma proposta ferida de ilegalidade e de inconstitucionalidade”, que entronca numa situação de “inaceitabilidade”, por ferir direitos fundamentais dos militares. Ainda no que respeita ao regime especial de disciplina militar, e depois de, no passado dia 3, a ANS ter vindo a público acusar a tutela de “falta de transparência”, por aprovar a proposta sem ouvir as associações profissionais, prerrogativa que o ministro disse não ser obrigatória, Álvaro Martins recordou que “a lei orgânica nº. 3 obriga à audição prévia das associações em determinadas matérias, entre as quais esta se inclui”.

Severiano Teixeira foi peremptório na afirmação de que as associações militares poderão ser ouvidas “durante o processo legislativo” na Assembleia da República, mas a Associação Nacional de Sargentos questiona-se sobre a utilidade de dar a sua opinião depois de a lei ser aprovada: “De que vale, depois de a lei aprovada, escreverem-nos a pedir uma posição, também escrita, sobre o diploma?”, pergunta Álvaro Martins, sublinhando que esse “simulacro de audição serve apenas para vir escrito, no final do texto da lei, que as associações foram ouvidas”. Lamentando a falta de diálogo do Executivo liderado por José Sócrates, os militares garantem que “há muitas possibilidades e muitos mecanismos legais que podem ser accionados” para travar o processo de aprovação da lei.

 

REGIME ESPECIAL

OBTEVE PARECERES FAVORÁVEIS

 

O Conselho Superior de Defesa Nacional, reunido no passado dia 27 de Abril numa sessão ordinária, emitiu parecer favorável à proposta de lei do Governo de criação do regime especial para a disciplina militar, mas garantindo o acesso dos militares à Justiça. O diploma legal pretende “estabelecer o regime especial dos processos relativos a actos administrativos de aplicação de sanções disciplinares, que estão previstas no Regulamento de Disciplina Militar”, afirmou o general Goulão de Melo, porta-voz do CSDN, à saída do Palácio de Belém, onde decorreu a reunião daquele órgão de consulta do Presidente da República, que dias depois veio a público considerar que a proposta governamental é “adequada”.

No dia 2 deste mês Aníbal Cavaco Silva colocou-se ao lado do Executivo socialista, lembrando que esta é uma matéria em que “é importante haver um consenso alargado” entre os órgãos de soberania e os partidos políticos.De acordo com o Chefe de Estado, “o projecto de lei que esteve em discussão no Conselho Superior de Defesa Nacional respeita direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa, e dá resposta ao que as Forças Armadas consideram ser necessário para o exercício das suas funções”.

O Presidente da República, que por inerência é também Comandante Supremo das Forças Armadas, proferiu estas declarações no âmbito de uma visita ao Instituto de Estudos Superiores Militares, em Lisboa, onde, ladeado pelo ministro da Defesa Nacional, Nuno Severiano Teixeira, considerou que, “nestas matérias das Forças Armadas – um pilar do Estado democrático – é muito importante haver o consenso alargado dos órgãos de soberania e entre as forças políticas”.Nessa visita o titular da pasta da Defesa anunciou a intenção do Governo de dar a conhecer a proposta de lei que cria o regime especial para a disciplina militar.

Nuno Severiano Teixeira adiantou ainda que será criado “um regime especial” para que a disciplina militar deixe de ser “tratada nos tribunais como um acto administrativo qualquer”. Sem querer adiantar “os mecanismos jurídicos que compatibilizarão os diferentes valores constitucionalmente protegidos” da disciplina militar e do acesso à Justiça, o governante excluiu a colocação de juízes militares nos tribunais, uma vez que os tribunais militares foram extintos há cerca de três anos, passando nessa altura os militares a ser julgados nos tribunais civis, como os restantes cidadãos.

 

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