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REPORTAGEM PUBLICADA NO BLOG MENTE DESPENTEADA NO DIA 26 DE OUTUBRO DE 2014

Desafios e testemunhos

de superação para inspirar felicidade no outro

Elsa Freitas tem hoje 25 anos e é “uma lutadora desde que nasceu”, altura em que lhe foi diagnosticada espinha bífida. Atirada para uma cadeira-de-rodas aos 12 anos e a sofrer de insuficiência renal desde os 13, experimentou já alguns problemas de saúde e por duas vezes esteve mesmo muito perto da morte, afirmando mesmo que tem “um óbito de uma hora” no seu registo clínico. Mónica Ribeiro, hoje com 23, sobreviveu, em Dezembro de 2004, ao tsunami na Tailândia, o terceiro maior de que há registo, em que perdeu os pais e lutou pela própria vida. Pedro Pinto tem 28 anos e há oito meses perdeu a namorada. Carolina, de apenas 22 anos, morreu subitamente durante o sono, vítima de uma embolia pulmonar. Estas são três histórias de luta, de perda e de superação que os três jovens têm partilhado com diversas plateias nos últimos dias, no âmbito do projecto «Superar o impossível». O objectivo, dizem, é inspirar os outros e mostrar-lhes que é possível vencer o desalento que os acontecimentos mais dramáticos provocam nas nossas vidas e renascer para a felicidade. Depois de Olhão, na sexta-feira, e de Portimão, ontem, estiveram hoje na Universidade do Algarve, em Faro. O Mente Despenteada foi ouvi-los.

 

CARLA TEIXEIRA

Elsa e Mónica fundaram o projecto «Superar o impossível» no passado mês de Maio, na Ilha da Madeira. Participando nas IV Jornadas da Associação Entrelaços, que tiveram lugar no Instituto S. João de Deus, no Funchal, discursaram para cerca de duas dezenas de pessoas, e o sucesso das suas intervenções foi tanto que o convite para repetirem a experiência não tardou. Dessa vez falaram para uma plateia mais restrita, de cerca de 80 convidados, mas o entusiasmo não foi menor. E se a ideia teve receptividade no arquipélago, rapidamente começou a ganhar impulso nas redes sociais, encorajando as suas mentoras a transportar a experiência para o Continente. Com a ambição de tocar os portugueses, de Norte a Sul do país, conceberam um programa de palestras em que contam as suas experiências de vida, procurando deixar mensagens de incentivo e coragem a quem as ouve, mostrando sempre que é possível vencer as barreiras que a vida nos coloca, ultrapassando obstáculos e alcançando a paz interior e a felicidade que está reservada a cada um. A ideia passava também por dar voz a cidadãos locais com testemunhos de superação de momentos particularmente difíceis nas suas vidas, e nesse sentido contaram, nas sessões realizadas em Olhão, Portimão e Faro, com a presença do algarvio Pedro Pinto.

 

ELSA FREITAS

“Tenho uma doença, não sou a doença”

 

Do alto dos seus 25 anos, mesmo que a vejamos baixinha e sentada na sua cadeira-de-rodas, Elsa Freitas é o retrato da confiança, da segurança e da auto-estima que apregoa. Peremptória na afirmação de que para ela “não há impossíveis”, deixa bem patente a consciência que tem de que a espinha bífida é a sua realidade, de que não pode fugir “por muito que queira”. Recorda que viver com esta doença é, como com outras, “um desafio permanente” que a leva a valorizar todos os momentos e a desafiar sempre os seus limites: “Nasci com uma doença, tenho uma doença, mas não sou a doença”, assevera. Não tem memórias do pai, que morreu quando ela tinha apenas dois anos, mas percebe-se que é imensamente grata à mãe, “uma lutadora”, e à irmã que, inspirada nela, acabou por se formar em Medicina, estando actualmente a trabalhar em Inglaterra. Gratidão é também o sentimento que nutre pelos médicos que a acompanharam ao longo da vida, de entre os quais salienta os neurocirurgiões Gil Bebiano e Gentil Martins, a quem, com apenas 11 anos, se dirigiu dizendo-lhe que seria ele a salvar-lhe a vida.

Salientando o papel essencial da família em todo este processo, dos amigos diz apenas isto: “Há amigos e amigos, mas os verdadeiros nunca te excluirão ou questionarão. Nunca te apontarão o dedo. A sociedade sim. A sociedade estigmatiza-te, mas estamos a tentar mudar isso e vamos conseguir. Roma não se fez num dia”, dispara. Mais do que a maioria de nós, Elsa sabe que a vida pode ser frágil e breve, e por isso considera que é fundamental vivermos todos os momentos. “Não é viver um dia de cada vez! É viver momento a momento”, explica. Recordando que passou a andar numa cadeira-de-rodas aos 12 anos, e que aos 13 já sofria de osteoporose e insuficiência renal (faz hemodiálise quatro vezes por semana e sabe que se falhar uma sessão morrerá), que esteve duas vezes em coma e que quase morreu de sepsis (inflamação severa que causa a falência de vários órgãos) num desses episódios, tendo mesmo sido registado “um óbito de uma hora” de que miraculosamente acordou “quando ninguém esperava”, frisa que é preciso aproveitar a vida ao máximo.

A permanente luta pela vida não inibiu Elsa de responder a alguns dos seus desafios e de concretizar o seu maior sonho: dançar. É fundadora do grupo Dançando com a Diferença, que tem já 14 anos de vida e de sucesso a nível nacional e internacional, e foi a primeira bailarina em cadeira-de-rodas a entrar no Conservatório de Dança da Madeira. Sabe que essa sua conquista “abriu portas a outras pessoas”, e por isso lança o repto aos que, julgando que não conseguirão alcançar os seus sonhos, se deixam ficar sentados, sem lutar por eles: “Desafiem-se! Os sonhos não são para dormir à noite. Sonhem durante a noite, mas realizem-nos durante o dia”. Dona de uma forte presença, Elsa Freitas pode bem ser o corpo da lição que devemos aprender e ter sempre presente: ser diferente não é ser incapaz, e sonhar é poder. Com vontade, com coragem, com resiliência, podemos atingir os nossos objectivos. Basta que lutemos verdadeiramente por eles…

 

MÓNICA RIBEIRO

“Queria viver, conhecer o amor verdadeiro e ajudar a salvar o mundo”

 

O relato é extenso e muito pormenorizado. Recuando ao dia 26 de Dezembro de 2004 como se tudo se tivesse passado ontem, Mónica explana todos os pormenores daquela manhã fatídica. De como ela e os pais tinham adormecido e perdido o último autocarro do hotel para a praia, das várias tentativas do pai para fazer com que chegassem lá por outros meios, de como, uma vez lá chegados, constataram que ao contrário do que era habitual não havia mar na praia naquele dia. O tsunami de Dezembro de 2004 no sudeste asiático foi o maior registado até àquele dia (actualmente figura em terceiro lugar do ranking) e deixou um rasto de mais de 300 mil mortos. Com apenas 13 anos, Mónica foi uma das sobreviventes, e a história que partilhou com a plateia da palestra de hoje em Faro evidencia a batalha dificílima que teve de travar para se manter viva, fugindo à imensa “parede de água” que levou tudo à frente naquela linda e inesperadamente tão negra manhã.

Depois de “uma eternidade” a correr, a nadar, a pairar sobre a água, no meio de escombros e corpos, e de um momento em que, exausta, a sobrar dores onde faltavam as forças, chegou a pensar que talvez a morte fosse uma coisa boa, mas Mónica “queria viver. Queria conhecer o amor verdadeiro e ajudar a salvar o mundo”, e finalmente teve essa força e venceu a luta: a percepção de que estava viva e a salvo deixou-a profundamente feliz. “Não senti revolta”, relata, acrescentando que “Estava tão feliz por estar viva que não havia espaço para mais nada”. A viver em Macau à data da tragédia, foi depois de confirmada a morte dos pais que veio para Portugal, para casa de uma tia. Tudo era novidade por cá, e enquanto assim foi a mente, distraída por tantas coisas diferentes e novas, conseguiu calar a dor e a saudade que vieram mais tarde. “Cheguei a desejar ter morrido naquele dia também, mas uma vozinha dentro de mim dizia-me para ter coragem e força, que tudo ia melhorar, até porque piorar também seria difícil”, enfatiza.

Chegou então a revolta. Revoltava-me que me dissessem para não pensar mais no tsunami. Que tinha de ser forte, que aguentasse e não pensasse mais naquilo. E eu pensava que aquelas pessoas não eram normais! Como é que se pode não pensar numa coisa daquelas?! Como é que não se pensa no tsunami que matou os meus pais e me levou tudo?!”, questionava-se Mónica quando ouvia esses conselhos. Foi por isso que, conta, deixou de ouvir os outros. “Passei a ouvir-me, abri uma fase de introspecção”. Nessa altura “perguntava-me por que razão aquilo tinha acontecido comigo, que tinha feito para merecer algo assim, logo eu que tinha uma vida perfeita”, recorda Mónica. Foi então que percebeu, com orgulho, que os seus pais “não eram pessoas normais” e que lhe ensinaram muitas coisas que só muito mais tarde entendeu. Eles diziam-me que “temos sempre muito mais a aprender com as perguntas que fazemos do que com as respostas que obtemos, e de facto o tsunami aconteceu num dia mas as lições que me deu vão durar a minha vida inteira”. Em jeito de conselho, Mónica Ribeiro diz que “devemos lutar pelo que queremos como se a nossa vida dependesse disso, porque às vezes depende mesmo”…

 

PEDRO PINTO

“Conhecer a Carolina era um desafio”

 

As histórias de amor começam quase sempre por acaso, e no caso de Pedro Pinto e Carolina Tendon também foi assim. Ele tinha um projecto musical e cantava, ela fazia parte de um grupo de dança e era poesia em movimento. Tinham outra coisa em comum: ambos gostavam de ficar quietinhos no canto da sala, mais a observar do que a intervir, e quando a convivência se tornou frequente Pedro exclamou, embevecido, que ela era como ele. Que conhecê-la seria um desafio. Namoraram durante quatro anos. Ele programador informático com a paixão pela música, ela estudante de Medicina Veterinária com um amor desmedido pela dança, ambos com pouco tempo mas disponibilidade total para o amor. Encontraram-se. Encontraram-se e o amor nasceu. Esse amor que é ainda visível nos olhos de Pedro, oito meses depois de ter enviado uma série de mensagens de telemóvel a Carolina e de ela nunca lhe ter dado uma resposta. São olhos que se embaciam, que se emocionam ao ponto de lhe embargar a voz, a boca seca de saudade.

A notícia chegou por telefone, numa segunda-feira de má memória, na voz de uma amiga a quem, estranhando a falta de respostas às suas mensagens, Pedro interpelara: Carolina tinha partido. Tinha morrido em Évora, cidade onde estudava. Sucumbira, durante o sono, a uma embolia pulmonar bilateral que chegara sem aviso. Por isso tinha deixado por responder as mensagens! Oito meses depois, ainda é com grande emoção que ele fala dela. Na palestra de hoje na Universidade do Algarve passou uma série de fotografias dela, dos dois, de vídeos da Carolina a dançar, dos momentos felizes que viveram, e leu as mensagens que ela lhe escrevera, testemunhos de um amor seguro e eterno. Carolina queria viver com Pedro todos os seus aniversários, mas não esteve no último, celebrado precisamente ontem. Não esteve fisicamente, porque em espírito continuam juntos, e é precisamente em nome desse amor que ele anda de cidade em cidade a promover o livro «De mim para mim», composto por textos que a namorada vinha escrevendo desde os seus 10 anos. “Eu sabia que este livro ia existir. Só não sabia que seria tão cedo”, explica Pedro.

Pedro e a família de Carolina escolheram e compilaram os textos que compõem a obra, cujo prefácio foi escrito pela própria autora, em 2012, sem imaginar que o sonho de escrever um livro seria concretizado de forma póstuma pelos que mais a amaram e amam:

 

Este não é um livro com mensagem.

É um livro de mensagens - as minhas.

 

Elas não são de mim para vocês. São de mim para mim, e de vocês para vocês.

Cada mensagem é um lugar meu, cada interpretação faz desse lugar o vosso.

 

Não serve para ter na cabeceira, nem para guardar na estante

ou na gaveta, serve para inspirar a vida - a vossa!

 

Carolina Tendon

01-03-2012

 

Os textos escritos ao longo de 12 anos surgem por ordem cronológica, para darem conta da evolução do pensamento e da escrita da autora. De leitura simultaneamente fácil e difícil, porque contagiante mas emocionante e emocionada, «De mim para mim» revela o espírito livre, de uma menina entre os 10 e os 22 anos de idade, mas com uma personalidade forte e um pensamento muito à frente do seu tempo, com uma paixão imensa pela dança e pelos animais e uma enorme vontade de viver. Carolina vive agora na memória daqueles que tiveram o privilégio de privar da sua amizade, e vive também nestas páginas. E se numa das últimas páginas da obra nos explica que “a vida é eterna, o contrário não o digo! Porque se assim não fosse, nada faria sentido”, na contracapa do livro, como que falando-nos de lá, de onde está agora, Carolina tranquiliza-nos pela sua ausência física: “Deixei de andar pelos campos, mas passei a bailar no céu”. Pedro acredita nisso. Acredita que a sua namorada, liberta no mar da praia que gostava de frequentar, dança hoje pelo céu. Que é livre, como teria de ser para ser Carolina.

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