top of page

ENTREVISTA PUBLICADA NO JORNAL «O PRIMEIRO DE JANEIRO» EM ABRIL DE 2008.

MEGLENA KUNEVA, COMISSÁRIA EUROPEIA COM O PELOURO DO DIREITO DO CONSUMO...

"Os portugueses deveriam ser mais autónomos"

 

Lutou sete anos pela adesão da Bulgária à União Europeia, e há um ano assumiu funções como comissária para o Direito do Consumo. De visita a Portugal, Meglena Kuneva falou ao JANEIRO dos grandes desafios para o mercado europeu e instou os portugueses a um maior dinamismo.

 

CARLA TEIXEIRA

 

 

Meglena Kuneva é búlgara, e desempenha funções na Comissão Europeia apenas há cerca de um ano, desde que a Bulgária aderiu à União. Que grandes desafios encontrou em Bruxelas, e que balanço pode fazer, neste momento, do que já fez?

 

Esta é a primeira vez que a Bulgária assume um posto na Comissão Europeia, e o primeiro ano – é muito nova e talvez não se recorde de quando isso aconteceu em Portugal, porque já foi há quase 23 anos –, mas o primeiro ano de adesão de um país à União Europeia é um tempo muito especial. Eu liderei as negociações para a adesão do meu país, e assinei o tratado de adesão, numa bonita cerimónia no Luxemburgo. Trabalhei com a equipa que preparou essa adesão durante sete anos, com uma proximidade muito maior do que tive, nesse tempo, com a minha própria família. Estávamos em contacto 24 horas por dia, sete dias por semana. Sei mais de um ou outro capítulo das negociações do que sei de um ou outro ano escolar do meu filho... É a verdade! A melhor parte é que nós finalizamos as negociações e o meu filho terminou a sua escolaridade, ambos com muito bons resultados. Portanto, o meu empenho no trabalho não afectou muito o aspecto familiar, que não foi penalizado pela minha falta de controlo (risos). Este é um tempo único, e explico-lhe porquê. Fui capaz de cumprir aquilo que tinha prometido aos meus compatriotas. Disse-lhes que a Bulgária entraria para a União Europeia em 2007 e consegui cumprir essa promessa.

 

Foi também uma espécie de vitória pessoal?

 

Foi melhor do que uma vitória apenas pessoal. Foi uma vitória comum, de todos os cidadãos búlgaros, que sonhavam com a adesão à União Europeia. Ter a sensação de que faço parte da equipa que tornou possível concretizar esse anseio é a mais deliciosa e a mais perfeita das sensações. Creio que a alegria deve ser partilhada, porque se não for não é a mesma coisa. Temos grandes esperanças para a nossa integração. Estamos atentos e dispostos a trabalhar 24 horas por dia. Quero que sempre que alguém na Comissão tenha algo a dizer sobre a Bulgária, possa dizer que estamos a trabalhar arduamente, com empenho, com devoção à Europa. Quero esculpir e melhorar a imagem de muitos e muitos búlgaros empenhados na causa europeia, e acho que tenho um portfolio muito interessante, e gosto muito deste trabalho. É muito relacionado com a economia, mas é sobretudo relacionado com as pessoas, e é por isso que é tão interessante.

 

A estratégia europeia em matéria de políticas de consumo definida para o período entre 2007 e 2013 aponta, como principais prioridades, os serviços financeiros, o comércio electrónico, o timesharing e o crédito ao consumo. São também estas as linhas mestras do Gabinete Kuneva?

 

Essas são as ferramentas de que dispomos para servir o objectivo político, que é a criação de um mercado aberto para os cidadãos, que sirva os seus interesses da melhor maneira. O mercado que queremos criar é um mercado em que empresas e cidadãos tenham uma importância equivalente, porque as empresas europeias têm feito um importante progresso em termos de movimentação de bens, de serviços e de capitais. Isso é óptimo, mas agora precisamos de saber como é que o mercado funciona e de que forma é impulsionado, no sentido de melhor podermos servir os cidadãos. Temos de focalizar a actividade do mercado em termos das vantagens que ele traz aos cidadãos. Estamos satisfeitos com o mercado que temos? Somos realmente abertos e livres, ou temos níveis de protecção diferentes, qualidades de produtos e serviços diferentes e preços diferentes em países diferentes? Se temos, e se esses países são próximos, temos de tentar entender as razões por que um determinado produto custa mais num país do que no país ao lado. Não queremos impor os preços, mas temos de perceber de que forma é que os mercados estão a funcionar.

 

Um dos seus objectivos, já assumido, é o de aumentar o nível de confiança dos consumidores europeus, de modo a poder impulsionar a competitividade empresarial. Como é que isso pode ser feito?

 

Desde logo livrando-nos daquilo a que chamo “assassinos dos mercados”, porque há empresas e práticas comerciais que simplesmente arruinam os mercados, e que os matam. É sobre essas empresas e esses procedimentos que temos de actuar e estar atentos. Se não estamos satisfeitos com um fornecedor de serviços, devemos trocar de fornecedor, sem hesitações. Temos de manter a vigilância apertada sobre as empresas e os procedimentos que adoptam. Não é fácil regular o mercado, mas é essencial. Temos de o fazer. Não basta apenas produzir legislação adequada. É preciso que os consumidores assumam o seu papel, que se mostrem empenhados e atentos, e que exerçam os seus direitos quando devem fazê-lo.

 

O presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo, Mário Frota – com quem teve oportunidade de se cruzar na sua curta estadia em Portugal – preconiza que só a implementação de fortes medidas de fiscalização e medidas coercivas nos tribunais permitirão pôr termo às práticas comerciais desleais. É também essa a sua opinião?

 

Esse é o último recurso, que a meu ver deve ser exercido quando nada a montante dessa alternativa resultou, mas o mais importante é fazer com que os empresários percebam que o cumprimento das regras de mercado, e da nova directiva contra as práticas comerciais desleais, os fará poupar aborrecimentos e provavelmente dinheiro. A directiva não é contra as empresas. Pelo contrário, é uma medida que visa proteger os interesses de todos os agentes do mercado. Porque, por exemplo, se uma empresa garantir que um determinado produto seu protege a 100 por cento a pele dos raios solares, e se alguém que consumiu esse produto tiver uma doença de pele, essa empresa não cumpriu o seu dever. Não há produtos 100 por cento seguros, e não é correcto anunciá-los como tal. Se um consumidor acreditar numa promessa de uma empresa que depois não é cumprida, essa empresa pode ser processada, e perder dinheiro, mas se a empresa em causa for cumpridora dos requisitos da nova directiva contra as práticas comerciais desleais, então não terá problemas, porque comunicará sempre de forma correcta as características do seu produto. Também será positivo para a empresa.

 

Os nórdicos reivindicam o estatuto de liderança em matéria de protecção do consumidor. Como comenta a performance portuguesa nesta área? Estamos na frente ou na cauda da Europa?

 

Antes de mais gostaria de dizer que tenho enorme simpatia e enorme respeito por Portugal e pelos portugueses, a quem vejo como amigos. Acho que Portugal tem imensas coisas positivas, tem uma organização forte e muito bem organizada, que é a DECO (associação portuguesa de defesa do consumidor), que é muito activa e muito empenhada na causa que abraçou. Considero apenas que os portugueses deveriam ser mais autónomos e não esperar que outros façam o trabalho por eles. As políticas europeias em matéria de consumo são muito baseadas no activismo e na capacidade para erguermos a voz para lutarmos pelos nossos direitos enquanto cidadãos. As empresas portuguesas são genericamente cumpridoras e zelam pelo cumprimento dos seus deveres. É nessas empresas que os cidadãos devem fazer as suas apostas, pondo de lado e empurrando para fora do mercado as empresas que não cumprem os seus deveres nem respeitam os direitos dos consumidores. O meu conselho pessoal é o de que comparem sempre produtos e preços. Comparar e não ceder a impulsos de momento. Devem pedir sempre mais informações sobre os produtos em que estão interessados e não hesitar em comparar. Também não devem ceder aos apelos do crédito ao consumo, porque por vezes só dão conta da dificuldade em cumprir as prestações quando já é demasiado tarde...

 

Considera que existe falta de informação, e que é isso que torna os cidadãos mais vulneráveis às práticas comerciais desleais? Podemos resolver esse problema desenvolvendo ferramentas educacionais, envolvendo os cidadãos na construção política e, por essa via, fortalecendo a sua posição no seio do mercado?

 

Acho que existe, essencialmente, falta de literacia, e esse é um grande desafio nos tempos que correm. Os produtos estão a tornar-se mais e mais complexos. Nunca me atreveria a comprar um aparelho muito sofisticado estando debaixo de pressão. Mais vale adiar a compra, informar-nos melhor. Mais vale perder tempo a analisar o produto, as condições, a obter aconselhamento, do que fazer um novo crédito para um produto que não conhecemos bem e nem sabemos se serve adequadamente as nossas necessidades. As nossas escolhas devem ser sempre cuidadosamente pensadas, tendo em conta os nossos planos pessoais. Dou-lhe um exemplo muito claro: quando temos 18 ou 19 anos é bom ter um crédito para a nossa educação, mas esse não é, provavelmente, o melhor momento para termos uma hipoteca, na medida em que ainda não sabemos qual será o nosso futuro em termos pessoais e profissionais, e sabemos que, mais tarde ou mais cedo, vamos casar, e ter filhos, e tudo isso tem de ser ponderado no momento da adesão a um crédito. É adequado analisar as nossas condições pessoais e as do mercado. Por isso digo que se trata essencialmente de um problema de literacia, mais do que de informação.

 

Numa entrevista anterior afirmou que o nível de protecção aos consumidores é elevado nos produtos, mas muito baixo nos serviços. Por que é assim, e de que forma poderemos encurtar a distância entre os dois indicadores?

 

Imagine, por exemplo, o que se passa com os dados pessoais e a internet. Quando estamos na internet é como se fossemos lá fora e deixássemos a carteira em cima da mesa, sem ninguém a tomar conta. O que poderia acontecer? Poderiam roubar a carteira, ou poderiam fornecer os nossos dados a empresas, que os usariam para difundir mensagens publicitárias ou para nos “perseguir” com ofertas de produtos. Isso não é justo, mas até agora não fomos capazes de fazer nada contra isso. Não é fácil conseguir regular este tipo de mercados.

 

No último Dia Mundial do Consumidor, celebrado a 15 de Março, disse que os direitos do consumidor são claros, e insistiu na necessidade de os cidadãos não hesitarem em fazer uso deles. A que factores atribui essa hesitação? De que modo podemos reduzir essa tendência para não agir?

 

Isso acontece porque há sociedades que estão pouco interessadas em ser activas e estão mais interessadas em queixar-se, embora sempre assim, em conversa com os amigos. Na Dinamarca, por exemplo, a protecção dos consumidores já tem mais de 60 anos. Começou logo depois da II Guerra Mundial, e por um motivo exemplar: o mercado negro dos alimentos. Considerando intolerável esta situação, um grupo de mulheres reuniu-se com o objectivo de defender os direitos dos consumidores a não serem enganados pelos vendedores e a poderem lutar por melhores condições de mercado. Em todos os serviços há uma regulação. Eles “perderam” tempo para definir estratégias e puseram-nas em prática. No meu trabalho tento sempre cruzar experiências, e tal como estou em Portugal a falar da Dinamarca, sempre que vou à Dinamarca procuro mostrar o sucesso de experiências realizadas noutros países. Por exemplo, poderei dizer que em Portugal a resolução alternativa de litígios nos julgados de paz ou o associativismo configuram bons exemplos, mas gostaria de ver maior empenho pessoal na defesa dos consumidores. Porque ser consumidor é, antes de mais, ser cidadão.

 

A morosidade processual na Justiça, por exemplo, não pode ser também uma peça na engrenagem dessa hesitação dos portugueses em fazer valer os seus direitos enquanto consumidores?

 

Exactamente. Essa questão entronca na estrutura da própria sociedade, e no modo como vemos o sistema judicial, de que forma é que ele responde às necessidades. O sistema judicial é confiável? Importa realmente ao Estado saber que os cidadãos se queixam? E como reage a essas queixas? O que importa saber é que, enquanto cidadãos, somos nós que construímos a sociedade. A mudança não acontece do dia para a noite, mas se não a demandarmos não poderemos ficar passivamente à espera que ela aconteça. Temos de agir. Não há outra maneira.

 

Que mensagem gostaria de deixar aos consumidores portugueses?

 

Creio que os portugueses evoluíram muito desde a sua adesão à União Europeia. O momento actual é de luta pela excelência, e o meu desejo é o de que haja mais e mais países a integrar essa luta, e que Portugal se mantenha sempre no patamar cimeiro da defesa dos consumidores.

 

QUEM É?

 

Meglena KunevaNasceu em Sófia, na Bulgária, a 22 de Junho de 1957. É casada e tem um filho de 22 anos. Aos 50 anos, exibe um currículo relativamente extenso na área política. A estreia deu-se em 2000, quando, segundo afirma, decidiu deixar de ser uma mera espectadora, uma voz crítica nas conversas entre amigos, para passar a ser actriz no palco onde são tomadas as grandes decisões, que afectam todos os cidadãos. Licenciada em Direito pela Universidade de Sófia em 2001, concluiu, desde aquele ano, diversas pós-graduações (nas universidades norte-americanas de Georgetown e Washington). Especializou-se nas áreas do ambiente e dos direitos humanos, foi professora universitária e editou um programa na rádio nacional da Bulgária. Diz-se “europeísta convicta”, pelo que foi com empenho e entusiasmo que tomou parte da preparação da Bulgária para a adesão à União Europeia. 

Em termos políticos foi conselheira do conselho de ministros búlgaro, deputada do Movimento Simeão II no parlamento e ministra para a Integração Europeia. Em Janeiro de 2007, consumado o alargamento que deu à Bulgária e à Roménia um lugar entre 27 Estados da UE, assumiu a pasta da Defesa do Consumidor, que até essa altura estava anexada à da Saúde. Apanhou a meio o mandato da Comissão Barroso e, tal como costuma dizer, ainda não parou de correr, porque “havia muitos dossiers para ler” e muitas informações para assimilar. Gosta de trabalhar em equipa, mas frisa sempre que são os consumidores europeus a sua máxima prioridade. Defende a necessidade de um conceito alargado de time-sharing, aposta nas relações com a China e na protecção dos cidadãos que recorrem ao crédito bancário.

 

C.T.

bottom of page