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ENTREVISTA PUBLICADA NO BLOG MENTE DESPENTEADA NO DIA 15 DE OUTUBRO DE 2011

Portuenses aderiram em massa ao protesto global contra a crise

 

TEXTOS E FOTOS: CARLA TEIXEIRA

A democracia saiu à rua e os portuenses literalmente invadiram a sua cidade. No âmbito da manifestação global contra a crise, em que participaram milhões de pessoas, em vários países, a Invicta cobriu-se de um manto colorido de bandeiras e cartazes, e foram muitos os que quiseram dar conta da sua indignação perante o actual cenário social e económico em Portugal. Largos milhares de pessoas concentraram-se, pelas 15 horas, na Praça da Batalha, de onde rumaram depois para a Avenida dos Aliados.Em ambos os locais houve palavras de ordem gritadas contra o Governo, contra a banca e contra a troika, e apesar de José Sócrates e o anterior executivo não terem escapado às críticas, a verdade é que foram os nomes de Passos Coelho, Cavaco Silva e Vítor Gaspar os alvos preferenciais das vaias dos “indignados”. E se o actual governo teve estado de graça, há que reconhecer que foi curto, porque nas ruas há já quem diga que não faltará muito para haver derramamento de sangue, e para que o actual primeiro-ministro comece a ter razões para temer pela sua segurança.Passavam poucos minutos das 15 horas quando foram abertas as hostilidades na Batalha. O microfone estava aberto e acessível a quem quisesse dizer publicamente o que lhe ia na alma, e foram muitos os que subiram a escadaria da Igreja de Santo Ildefonso para usar da palavra. Havia cartazes escritos em inglês e em castelhano, e um casal alemão, à conversa com o Mente Despenteada 3, reconheceu a elevada ingerência da Alemanha na política de todos os países da União Europeia, considerando que os portugueses se vêem actualmente confrontados com desafios muito complicados, com a perda do poder de compra a crescer avassaladoramente, sem que o Estado esteja a ser capaz de dar garantias de que a austeridade terá bons resultados.O protesto seguiu depois pela Rua de Passos Manuel, a caminho da principal praça da cidade, onde foi distribuído aos manifestantes e jornalistas presentes um comunicado do grupo Indignados do Porto, onde podia ler-se que, tal como na Islândia, na Grécia ou em Espanha, “também nós, em Portugal, queremos dar voz à indignação e dizer não”. Recusando o que dizem ser “o ideal economicista da sociedade, capaz de gerar e perpetuar profundas desigualdades e injustiças brutais”, afirmam pugnar por uma sociedade mais justa e equitativa, que abra caminho a um mundo novo, diferente, mais justo e mais solidário, responsabilidade que recai, segundo o documento, sobre todos nós.

 

“Este governo foi eleito com mentiras”

 

O Mente Despenteada fez o percurso entre a Praça da Batalha e a Avenida dos Aliados à conversa com José Soeiro. O dirigente bloquista, sociólogo e ex-deputado à Assembleia da República, foi comentando aquilo que via, envolto num mar de gente descontente e indignada mas com disposição para agir e lutar, sem nunca baixar os braços...

 

Como vês a adesão a esta manifestação aqui no Porto?

 

Do ponto em que estou não me é ainda possível ter a dimensão exacta da manifestação, mas é muita gente! São muitos milhares de pessoas. Não sei quantificar, mas é muita gente. Acho que uma das razões para que haja tanta gente é o facto de terem passado apenas dois dias sobre o anúncio deste corte brutal de dois meses de vencimento para grande parte dos funcionários públicos, de uma nova subida do IVA… É mais austeridade, e acho que as pessoas estão fartas. O facto de estarem hoje aqui é o sinal desse sentimento, porque assim é impossível sobreviver… Retirar o rendimento às pessoas significa que elas deixarão de ter capacidade para responder às suas necessidades, e isso significa que haverá mais desemprego, o que vai gerar mais recessão… É um ciclo infernal, do qual não se sai! E o que é mais absurdo nisto tudo é que nós olhamos para a Grécia, vemos o que se está a passar por lá, o que estas medidas estão a provocar, e aqui continua-se a fazer o mesmo, com o argumento de que temos de obedecer ao FMI, com a Banca a marcar presença no Conselho de Ministros onde estas decisões são tomadas e a assegurar a manutenção das suas margens, e com a maioria da população a ser brutalmente atacada…

 

Como é que a manifestação de hoje pode ajudar a travar esse ciclo infernal de que falas?

 

O grande desafio é a luta social, as pessoas fazerem-se ouvir. A rua é o espaço em que nasceu a democracia, e é na rua que ela tem de voltar a fazer-se ouvir…

 

Mas não há ainda a ideia de que sair à rua e protestar não resolve grande coisa?

 

Pois, essa é, quanto a mim, a dimensão que falta trabalhar. As pessoas mobilizam-se mais facilmente se sentirem que há uma alternativa palpável, e essa alternativa passa pelo esforço de construção de um programa político, de sabermos como é que saímos disto, com que políticas. Várias hipóteses têm sido aventadas, desde a taxação das mais-valias, a renegociação da dívida, o fim dos off-shores… No fundo, é preciso pôr o sistema financeiro a contribuir para a resolução desta crise, e compreender que um país não se gere como se gere uma casa. Porque numa casa não há off-shores, nem há especulação financeira (o filho não especula com o dinheiro da mãe), enfim… O país não é uma casa! Para podermos, a médio prazo, sair desta situação, é preciso levar a cabo uma política expansionista, e não recessiva. É preciso criar emprego, é preciso investir, e é preciso que o Estado invista. Não é pela via dos cortes sistemáticos, porque quanto mais se corta menos a economia resiste. Perde-se poder de compra e até o Estado recolhe menos impostos, porque as pessoas têm menor rendimento, compram menos…

 

Mas isso é extremamente claro. Não deveria sê-lo também para o Governo, que ainda por cima é liderado por uma pessoa formada em Economia?!

 

É extremamente claro, sim. O que acontece, muito simplesmente, é que isto colide com os interesses do capitalismo financeiro e de quem beneficia dele, e que é quem comanda esta crise. Neste momento, a riqueza está a ser transferida directamente de quem trabalha para pagar aos bancos, à dívida. É uma transferência directa de rendimento dos trabalhadores para o sector financeiro, e portanto, neste momento, quem manda é o sector financeiro. Manda no PSD, manda nas instituições internacionais que tutelam o país…

 

Então, e como é que se resgata o país às garras do sistema financeiro?

 

Só com democracia. Saindo à rua e exigindo, por exemplo, uma auditoria de cidadãos à dívida, como está a fazer-se na Grécia. Ou seja, nós queremos saber quem é que está a ficar com o dinheiro. Esse é um primeiro princípio de transparência na informação, para a poder daí se poder construir alternativas. As pessoas têm de sair à rua, dizer que isto é insustentável. As pessoas têm de dizer: “Parámos. Acabou, já chega”. Porque acho que só nessa altura é que conseguiremos fazer com que o poder político acorde. O problema, acho, não é elegermos outras pessoas. O problema é mesmo aquele conjunto de entidades que nós não elegemos. É que quem tem poder hoje – o Banco Central Europeu, a troika, de que o BCE faz parte, ou mesmo a Comissão Europeia – não é eleito.

 

Era o que se lia há pouco em alguns cartazes: ninguém votou em Angela Merkel…

 

Precisamente. E por isso temos de avançar para formas de democracia à escala europeia, para que possamos exigir que esta gente responda perante o povo. No actual modelo não há ninguém que responda ao povo! Os governos nacionais dizem que “isto é muito mau, mas temos de fazer porque eles obrigaram”, e “eles”, os que obrigam, são sempre pessoas que não têm de prestar contas a ninguém. Desse ponto de vista, o capitalismo está a acabar com a democracia. Acho que é evidente que aqueles que foram eleitos não estão a agir nos interesses do povo que os elegeu, e sim de uma minoria, mas o nosso alvo não é a democracia. É a falta de democracia. O problema não está na nossa capacidade para eleger pessoas, mas sim no facto de o poder estar concentrado nas mãos de pessoas que nós não temos capacidade de eleger e de controlar.

 

Pessoas que não respondem perante o eleitorado…

 

Exacto. Pessoas não respondem perante o povo, e como tal estão-se a marimbar. Vêem as manifestações e pensam: “Porreiro! Não tenho de responder perante eles”. Acho que esse é o grande problema na actualidade. A democracia à escala europeia é uma das dimensões mais importantes da resposta aos actuais problemas, penso.

 

E internamente, apenas quatro meses depois de termos ido a eleições legislativas e termos mandatado um novo governo esta manifestação não está de certo modo ferida de alguma falta de legitimidade? Como é que podemos reclamar legitimamente de um governo que acabámos de empossar nas urnas, com uma percentagem expressiva de votos?

 

Poderia pensar-se assim, mas creio que mesmo quem votou no PSD votou ouvindo Passos Coelho dizer que cortar no subsídio de férias e de Natal era um disparate; votou ouvindo-o dizer que a austeridade não pode recair sempre sobre os mesmos; votou ouvindo-o dizer que é preciso crescimento económico; votou ouvindo-o dizer que é preciso criar emprego! É óbvio que quem tivesse um pouquinho mais de atenção e lesse o programa político do PSD – onde não estão claramente explanadas todas estas medidas, este arraso (porque se estivesse, evidentemente eles não ganhavam as eleições), mas está o essencial da sua ideologia liberal – perceberia que esta seria a linha de actuação deste governo. Por isso, de certa forma, acho que quem tem a legitimidade ferida é o próprio governo, porque foi eleito dizendo que não ia fazer precisamente o que está a fazer…

 

Com mentiras?

 

Com mentiras. Esse é um dos dramas da política, porque só temos duas alternativas: ou se rompe o pacto com a troika, ou não há hipótese de haver democracia e de o país sobreviver. O pacto com a troika vai destruir o país.

 

E romper o pacto com a troika não vai também destruir o país e deixá-lo isolado, à margem da Europa?

 

Por isso, para romper o pacto com a troika teria de haver uma acção concertada de Portugal com a Grécia, com a Irlanda, eventualmente com Espanha, porque, por exemplo, não sou nada favorável à saída de Portugal do euro. Poderiam dizer-nos que essa solução representaria um empobrecimento. Pois é. Por isso devemos evitá-la, mas aquilo a que hoje assistimos é também um empobrecimento brutal: as pessoas perderam 20 por cento do seu rendimento, só nos salários, e depois ainda houve os aumentos nos impostos. Daqui a dois anos vamos olhar para trás e perceber que perdemos metade do rendimento. Isso é insustentável! Num país em que já existe uma franja de 20 por cento de pessoas a viver na pobreza, a continuar a cortar assim nas políticas sociais o que vejo daqui a uns anos é um país desertificado, transformado numa espécie de uma aldeia interior da Europa onde não vive ninguém, com uma crescente taxa de emigração entre as pessoas que têm alguma qualificação e que procuram emprego noutros sítios… É uma destruição do nosso futuro.

 

E como comentas, por exemplo, a antipatia que se sentia para com o anterior governo, e em particular para com José Sócrates, quando o actual governo está em funções há apenas quatro meses e já parece haver tanta revolta e tanta gente a querer pô-lo fora do poder?

 

No contexto de ditadura financeira em que vivemos (bem sei que temos a possibilidade de eleger os nossos representantes e de irmos para a rua manifestarmos o descontentamento que sentimos, e isso faz parte da democracia, mas acho que a economia não é democrática e o cenário actual é o de uma ditadura financeira), os primeiros-ministros que administram esta ditadura, e que não respondem pelo interesse geral, da maioria, mas estão presos aos interesses e ao poder do capital financeiro, vão “queimar-se” cada vez mais rapidamente, porque neste contexto, se não quiserem romper com essa ditadura, não lhes resta outro papel que não o de mensageiros das más notícias. Acho que o drama deste momento que estamos a viver é precisamente esse: os primeiros-ministros e todas as pessoas no poder que não quiserem romper com essa ditadura vão queimar-se como fósforos! Porque já não existe sequer o papel da política, a dimensão da escolha. Não. Nós fazemos o que eles nos mandam fazer! Hoje não respondemos pelo povo, mas representamos os mercados, e isso vai-se naturalizando… Por exemplo: quando foi anunciada esta reforma da Administração Local que está em curso, o que nos foi dito pelo Governo foi que ela teria de ser feita porque a troika nos obriga a poupar dinheiro. Deixou de haver uma discussão sobre o território, deixou de haver política! E isto é assim em todas as áreas…

 

Impera o critério meramente economicista.

 

É o carácter economicista destas políticas, mas que é economicista também porque há a ideia de que se gastou demasiado nos últimos anos, mas atenção, porque há países muito mais endividados do que Portugal! Historicamente, não é verdade que o país não tenha atravessado outros momentos como este, com dívidas desta dimensão. Como já disse, não se gere um país como se gere uma casa, e o endividamento nesta altura pode servir para evitar a bancarrota no futuro. Sobretudo estamos a ser alvo de um ataque especulativo. Grande parte do dinheiro que temos de pagar não é dinheiro que nos emprestaram, mas sim juros. Portanto, não estamos a pagar o que nos emprestaram. Estamos, de facto, a enriquecer um conjunto de entidades que estão a engordar à nossa custa, e que são insensíveis, precisamente porque não respondem perante nós! Estão-se a marimbar. Se viermos para a rua, eles dizem-nos para protestarmos com o governo. Hoje o poder maior não é o poder visível. É precisamente o poder invisível, e é contra esse poder que devemos usar as nossas energias, para torná-lo visível.

 

Diante de tudo isso, o actual contexto económico e social não deveria ser favorável a uma viragem à esquerda e não, como vimos por exemplo na Madeira, a um aumento da força da direita?

 

Seria. Seria, mas há um problema. No contexto da história da esquerda portuguesa, e dos partidos que fazem parte dessa história, enfrentamos uma situação complicada: é que a esquerda sem o Partido Socialista não tem força para um governo alternativo, mas neste momento um governo com o PS também não seria um governo alternativo, porque o PS, mediante estas medidas, já veio dizer que não votará contra o Orçamento de Estado. Que no essencial concorda com estas medidas. Não só os socialistas assinaram o acordo com a troika, e vêm agora defendê-lo, como vêm defender também o próprio Orçamento do PSD e do CDS. Objectivamente, o PS está hoje do lado do problema, e não do lado da solução. E isso é dramático, porque precisávamos que a esquerda tivesse força suficiente para apresentar uma alternativa ao país. Ora, o que hoje acontece é que aqueles que têm uma alternativa não têm força suficiente para a realizarem e para serem governo, e o partido que teria essa força, e que poderia devolver à esquerda a capacidade para liderar o destino do país, está a rolar noutro sentido. O problema é esse. Enquanto os partidos à esquerda do PS não tiverem força para impor ao PS uma alternativa e construir um novo bloco social e uma nova maioria, há um certo desânimo. As pessoas vêm para a rua, mas não visualizam uma alternativa concreta. Temos de juntar toda a massa crítica que no nosso país acha que o capitalismo está a destruir-nos. Precisamos de outra forma de encarar o trabalho, vendo os trabalhadores como um recurso, e não como um problema, e de ver as leis do trabalho como uma protecção e um direito humano, e não como um resquício do passado…

 

Precisamos de mudar de paradigma?

 

Sim, precisamos de um novo modelo económico, e de deixarmos de nos ajoelhar perante o capital financeiro. Vamos fazer uma auditoria à dívida e dizer que não pagamos uma parte dos juros, porque são ilegítimos, e que há uma parte da dívida motivada pela corrupção e que deve ser paga por quem a fez! Estamos a debater um problema que é de ausência de dinheiro, mas vendemos o BPN – onde enterrámos quatro mil milhões de euros – e fomos vendê-lo, por uma ninharia, a um tipo que tinha para com o BPN uma dívida maior do que o dinheiro pelo qual comprou o banco! Américo Amorim devia ao BPN mais dinheiro do que aquele que deu pela compra do banco, e quem meteu dinheiro nesse banco fomos nós!

 

Esta é, de facto, uma situação quase caricatural…

 

É caricatural, mas infelizmente há situações parecidas com esta na Europa. Não com o escândalo do BPN, porque nisso acho que tivemos uma certa originalidade, mas há de facto situações parecidas noutros países. E isso coloca uma questão interessante sobre este protesto, que é a possibilidade de aprofundar a dimensão europeia das próprias lutas. Nós precisávamos de uma saída à escala europeia, e para isso é preciso juntar as forças sociais à escala europeia. Para mim a solução é essa. O desafio é mesmo mudar a Europa.

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