A criança que fui...
- Carla Teixeira
- 13 de set. de 2021
- 3 min de leitura

"A criança que fui chora na estrada", escreveu Fernando Pessoa. A frase vem-me à ideia, muitas vezes. Não creio que seja um balanço consciente da vida que ficou lá atrás, pois temo que se as crianças que todos fomos nos vissem hoje, já adultos, com todas as opções que tomámos, todos os caminhos que trilhámos, e sobretudo com todas as memórias que guardámos, todas chorariam. Não necessariamente por esse passado, que não há-de ser assim tão negro em todos nós, mas porque à medida que crescemos perdemos forçosamente a inocência. Aquela inocência que serviu de base a tantos sonhos, a tantos projectos e a tantas quimeras que depois se foram perdendo e fizeram com que também nos tivéssemos perdido dessas crianças que fomos.
Este não é um balanço escuro, atenção! Não estou convencida de que o adulto que sou tenha defraudado tanto assim a criança que fui. Na verdade, creio até que essa criança vive ainda dentro de mim, com a mesma inocência, a mesma capacidade de sonhar, de acreditar em mim, de acreditar nos outros, e de vencer os medos com a certeza de que todos os obstáculos são ultrapassáveis, com mais ou menos dor, com mais ou menos resiliência. Acredito que a criança que fui não chora ao ver o adulto em que me tornei, mas chorará certamente de saudade daquele tempo em que os sonhos eram simples, por mais elaborados que fossem, porque se aninhavam no colo da certeza de que um dia, quando crescêssemos, poderíamos fazer tudo o que a nossa tenra idade de então ainda não permitia.
Dentro de mim continuo a encontrar aquela criança sorridente, luminosa, que via nos sorrisos e nos abraços dos adultos a promessa de que um dia cresceria para ser como eles. E que bons exemplos me deu essa infância! Pais, avós, tios, primos... Gente com sorrisos sinceros, abraços genuínos, mãos estendidas para me amparar nas pequenas e nas grandes quedas. Gente feliz por me saber feliz, mas que não afrouxou a guarda sempre que precisei de rédea mais curta, de uma palavra mais firme, de um (a)braço à minha volta. Gente que me agarrou quando escorreguei, que me alertou quando errei, que me beijou quando caí e chorei, que me levantou das cinzas de todas as vezes em que também morri um pouco.
A minha família é a minha âncora. Os meus amigos, aqueles que escolhi para caminhar ao meu lado, que me sorriem e me ralham, que me abraçam e me confrontam, que me aconselham e nunca me traem, são a minha jangada. A minha vida é a vida que quis. A vida simples, de poucos artifícios, que construí. O meu coração vive cheio. Cheio dos que tenho comigo, aqui mesmo ao lado, mesmo à mão, e daqueles outros que tenho comigo mesmo que já só consiga vê-los, ouvi-los e abraçá-los nesse espaço de sonho e de saudade que é o amor eterno e inegociável. Porque o amor é assim, nosso sempre, nosso até ao infinito e ao intangível.
A criança que fui não chora na estrada, não. A criança que fui tornou-se o adulto que sou e aprendeu a viver dentro dessa capa de pessoa crescida. Uma pessoa imperfeita, porque ferida por mil e uma flechas, de mil e uma tormentas, mas uma pessoa viva, e que sobreviveu a tantos e tantos momentos de dor e de desalento. A pessoa completa, que reúne em si as memórias boas e más, as vitórias e as derrotas, todos os pequenos troféus e todas as grandes lições que a vida me deu. Viver é aprender. É crescer todos os dias um pouco mais. É chegar todos os dias um pouco mais longe. Cheguei dentro de mim, e esse é o maior dos meus feitos.
Olho para trás e sei que vivi. Que não me limitei a existir apenas. Sobrevivi a tantas e tantas provações, a tantas setas cravadas no peito. Sei que fintei a morte quando o meu corpo fraquejou e quase o abandonei, mas sei que também morri continuando viva, quando perdi quem mais amava e experimentei a maior de todas as dores. Viver é isso mesmo. Nascer, crescer, sonhar, ganhar, perder, sofrer, chorar, morrer, morrer mais um pouco, resistir, insistir, persistir, curar, renascer, continuar a crescer sempre. A respirar sempre, a inspirar os outros, todos os dias. Estou cá. Estou viva. Completa e serena, apesar do turbilhão cá dentro, da mente que se agita em dúvidas e em medos, em certezas de ontem que hoje se esfumam e se escapam por entre os meus dedos.
A criança que fui não chora.
O adulto que sou vive.
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